Quem cuida de quem cuida? : o estereótipo da mulher cuidadora

CTV LAB
5 min readMar 10, 2020

Por CTV LAB

Em 2019, criamos a campanha #MarçoVermelho para debatermos as diferentes vivências do ser mulher durante todo o mês de março. Em 2020, a campanha está de volta com novos temas em todos os canais de comunicação do CTV LAB

Onde está a família da tia Nastácia? Por que ela vive em função dos netos da dona Benta?

Cuidado é uma palavra feminina. Desde pequenas (no caso das mulheres cisgêneras) somos ensinadas a cuidar das bonecas, a brincar de panelinha e a sermos boas “mães”. Na adolescência, muitas de nós já dividimos a tarefa de gerenciar o trabalho doméstico com nossas mães — mesmo se tivermos outros homens (mais velhos ou da mesma idade) em casa. Quando crescemos dificilmente o panorama muda e grande parte das mulheres ficam responsáveis por cuidar de familiares doentes, idosos e das crianças — vivendo então duplas ou triplas jornadas de trabalho.

Para as mulheres negras, a jornada dupla existe desde a época da Escravatura, onde muitas eram obrigadas a cuidar da casa e dos filhos das sinhás e ainda precisavam cuidar de seus próprios filhos. Com a Abolição, surge a trabalhadora doméstica e 120 anos depois esse trabalho permanece com a cor e gênero demarcado: em 2017, dos 6,2 milhões de trabalhadores domésticos no Brasil, 4 milhões eram mulheres negras.

Essas mulheres se juntam ao contingente de outras profissões que tem como trabalho o “cuidar” do outro e são majoritariamente femininas: psicólogas, enfermeiras, professoras do Ensino Básico, assistentes sociais, nutricionistas, entre outras. Segundo o artigo “A Força de Trabalho do Setor de Saúde no Brasil: focalizando a feminilização”, de cinco pesquisadoras da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz):

No setor de saúde, a participação das mulheres chega a quase 70% do total, sendo 62% da força de trabalho das categorias profissionais de nível superior e 74% nos estratos profissionais de níveis médio e elementar.

Ou seja, mesmo no âmbito profissional, o “cuidar” remunerado também recai para as mulheres. Mas de onde vem o estereótipo da mulher cuidadora?

Tradução: “A base da nossa sociedade judaico-cristã é Maria, Mãe de Jesus e ela é perfeita”

Ok, ele não surgiu com o Cristianismo, mas as três religiões majoritárias (Islamismo, Judaísmo e Cristianismo) ajudam — e muito- a manter o estereótipo do cuidado como tarefa exclusivamente feminina.

Como dissemos lá em cima, quem nasce com útero é ensinada a cuidar desde a mais tenra idade, afinal a mulher perfeita é mãe e o instinto materno tornam os filhos prioridades na vida de toda mãe, não é mesmo?

Mas na nossa sociedade cheia de trabalhos precarizados, as mulheres mais pobres não podem parar de trabalhar e com a falta de vagas em creches, muitas vezes deixam seus filhos com as avós, o que torna o trabalho de cuidar das crianças interminável.

A outra face da moeda maternidade x trabalho é o alto índice de desemprego entre mulheres que são mães e então elas têm apenas duas escolhas: ser mãe em tempo integral ou se tornar empreendedora por necessidade.

Nesse trecho, Drauzio Varella explica a realidade de grande parte dos lares brasileiros: mulheres cuidando sozinha de outras mulheres

Fugir do papel de cuidadora é difícil mesmo para as mulheres sem filhos e até mesmo as que não estão em um relacionamento monogâmico com homens. Afinal, (e isso é só um exemplo) quem é responsável por trazer o café na hora da reunião na agência descolada (que talvez não tenha uma copeira — aha! copeirA, muito difícil ser um copeirO)? Uma mulher. Provavelmente a estagiária, não é mesmo?

A gente podia ficar até amanhã citando exemplos de mulheres cuidando dos outros, se forçando a dar conta de tudo e a culpa que tudo isso gera dentro de nós — inclusive a culpa de não cuidar tão bem de si mesma.

E quando precisamos ser cuidadas?

Apesar da imensa carga mental que a maioria de nós carrega 24/7 quando chega a nossa vez de sermos cuidadas a realidade é implacável.

Um estudo realizado pelas universidades de Stanford e Utah e pelo Centro de Pesquisa Seatle Cancer Care Alliance, todos dos Estados Unidos, indicou que a mulher tem seis vezes mais chances de ser abandonada pelo marido após a descoberta de uma doença grave.

E se os homens abandonam companheiras doentes, as mulheres encarceradas sofrem um abandono ainda maior — e não só de seus companheiros. Segundo dados do Infopen Mulheres de 2016:

Nos estabelecimentos masculinos, foram realizadas, em média, 7,8 visitas por pessoa ao longo do semestre, enquanto nos estabelecimentos femininos e mistos, essa média cai para 5,9 por pessoa privada de liberdade. Destacam-se os estados do Amazonas, Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte, em que a média de visitas realizadas nos estabelecimentos masculinos é mais de 5 vezes maior que a média nos estabelecimentos femininos.

Antes de serem presas, 71% das mulheres eram chefes de família ou dividiam a responsabilidade pelo sustento da casa e 74% tem filhos. Muitas delas não querem que a família se submeta às revistas vexatórias para visitá-las e enfrentam a solidão durante o cumprimento da pena.

Ou seja, mesmo no cárcere a carga mental dessas mulheres não diminui, o papel de cuidadora permanece.

E o que a Comunicação tem a ver com isso?

A publicidade naturaliza o papel da mulher como cuidadora ao repetir ano após ano as mesmas campanhas engessadas de Dia das Mães, onde evidencia apenas a avó perfeita dos bolinhos de chuva ou a mãe guerreira que “dá conta” de todas as tarefas do trabalho, do lar e dos filhos.

As novelas naturalizam esse papel de cuidadora ao usar de estereótipos de feminilidade para retratar suas mocinhas: sempre indefesas, dispostas a perdoar os deslizes de seus companheiros no cuidado da casa e das crianças. Também naturalizam a “cuidadora” ao insistir em criar personagens negras apenas como empregadas domésticas e serviçais da família branca.

Os filmes protagonizados por mulheres fortes, independentes e bem sucedidas no trabalho ajudam a nos empurrar para o papel de cuidadoras quando dizem explicita ou implicitamente que uma mulher só é feliz após casar e ter filhos.

Enfim, as representações culturais dizem muito de uma sociedade e enquanto retratarmos mulheres como cuidadoras por excelência dificilmente vamos inspirar as próximas gerações a mudar esse panorama.

Confira abaixo todos os textos da #MarçoVermelho:

#MarçoVermelho: por que criamos?

Masculinidade tóxica: o que o Marketing tem a ver com isso?

Por que as mulheres precisam ser guerreiras

Você conhece as mulheres que estão fazendo História agora?

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#MarçoVermelho: como os estereótipos influenciam na saúde da mulher

Padrões de beleza: como a mídia controla nossos corpo

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